quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A paz é uma rua de mão dupla




A violência não brota do nada. E não tem só uma ou duas causas nem caras. Não pode ser reduzida a fórmulas, como se tende a fazer nas situações limite. Do mesmo jeito esse objeto de desejo de tanta gente que se chama paz. Assim como violência gera mais violência, uma cara cordial, um olhar amigável e um sorriso desarmado convocam a paz no interlocutor. Pode ser impossível em alguns poucos casos; mas na maioria das vezes não só é possível como muito agradável. E faz bem à saúde.

As discussões sobre o assunto terminam muitas vezes num charco estéril de narcisismo. Argumentos irredutíveis que perdem de vista a questão concreta não servem para nada.
As discordâncias conceituais têm que existir e devem ser debatidas. Mas se vierem pela voz da prepotência e da vaidade, perdem sua razão de ser e servem apenas para engrossar o arsenal das farpas, muito útil a quem pretende aproveitar a crise para se projetar ou – pior ainda – tirar vantagem dela. Será que isso não é manifestação de violência?

No imaginário coletivo as represálias e a vingança parecem ter-se tornado recursos legítimos contra quem, com ou sem intenção, cria obstáculos ao interesse de alguém. A primeira atitude das pessoas é o revide, que vai das palavras à agressão física. Refletir um pouco nessas horas é um santo remédio para não pagar mico. Apesar das aparências, quem mantém o autocontrole numa situação de confronto merece o respeito de todos.

Violência tem graus mas não escalas que a tornem mensurável. É contagiosa, mas não existe medicamento eficaz contra ela, a não ser que se consiga uma mudança íntima, pessoal, pela qual alguém se disponha a ceder um pouco, ou ao menos mostrar-se aberto a isso, em nome de um entendimento melhor com o próximo.

O mundo não se divide em pessoas boas e más como se já estivesse tudo resolvido. Nada está resolvido, nem vai estar nunca. Sempre há o que melhorar em nossa vida. Mas isso só acontece quando estamos convencidos de que a paz resulta de uma atitude alerta para compreender, avaliar com lucidez e livre da cegueira da ira, tão freqüente nestes dias de brutalidade. Se a mudança não começar dentro de cada um, podemos dizer adeus à paz e à esperança de viver melhor.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Biblioteca livre




Livros que voam como passarinhos, passam de mão em mão, cumprem sua missão de contar histórias, divulgar fatos, levar cultura para quem não tem acesso a eles de outro jeito. Mas não só:
pega um livro de sua biblioteca, de que goste muito e escreva nele: ESTE LIVRO FAZ PARTE DA BIBLIOTECA LIVRE.
No verso da capa, escreva seu nome. Entregue-o a alguém que, você acredita, vai gostar de lê-lo. recomendando que em uma semana o passe adiante, para que outra pessoa o leia, e assim por diante. Seguindo o teu sistema de colar uma folha com a dedicatória (alguma coisa eu tenho que copiar, não dá pra ser original em tudo) cola-se no livro, no lugar da 1ª folha, um texto explicativo, para orientar os neófitos. Abaixo um exemplo, a título de sugestão:  (para imprimir, recortar no tamanho e colar como se fora a primeira folha do livro) Este é um livro exemplar, porque livre! Seu destino é navegar por muitas mãos, de par em par, que o manterão elevado à sua verdadeira dimensão e o levarão a seu sublime destino, que é ser lido, lido e lido, pois, segundo a opinião de seu libertador ? primeiro nome que consta no verso da capa ? é um ótimo livro. Dele se enamorará teu pensamento e tereis belos momentos juntos. Depois de amá-lo o farás prosseguir, a outras mãos, a outros olhares, a outros pensamentos que dele se enamorem talvez ainda mais, e de onde brotem outros vôos, outras idéias, outras compreensões. Este livro exemplar goza da proteção e dos direitos conferidos pela BIBLIOTECA LIVRE: - O direito de nunca mais ser comprado ou vendido. - O direito de ser liberado tão logo termine a troca de afetividades entre si e o leitor, ou ainda se esta troca, por falta de afinidades, não ocorrer. Um e outro caso comprova-se em uma semana. Mantê-lo por mais tempo é, em qualquer caso, fazê-lo novamente prisioneiro, o que é grave ofensa à liberdade de todos. - Este livro tem o direito de ser bem tratado e cuidado, de obter atenção e respeito. - Tem o inalienável direito de exercer seu destino, que é ser lido, muito lido. - Este exemplar tem ainda o direito de morrer livre, bem velhinho, bem vivido, bem gasto, conhecedor do mundo e das gentes, e feliz, num futuro muito longínquo.
Aproveite, caro amigo leitor, que ele está vivo e com você.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os gatos




Consultava o céu estrelado sem saber bem o que esperaria ver além das estrelas e dos insetos que costumam cruzar as janelas em setembro. A escuridão por si só não explicaria aquela intensidade que a fazia vibrar como as cordas graves de um violão. Não esperava ninguém, e no entanto toda se voltava para um personagem poderoso do dia que agora dominava sua noite. Não se espantava de ouvir gritos lá fora, gemidos como queixas a atravessar o tempo. A lua estava distante, quase sumida no horizonte.
Os gritos dos gatos no jardim a atravessaram. Sempre pensara que a voz dos gatos da noite os transcende, faz deles mais que simples gatos: mesmo no caso dos gatos, o desejo é capaz de criar muito mais do que gatinhos. Sabia o fogo que os consumia – favos retirados da colméia escorrendo no meio da noite bruta. Os gatos lhe haviam feito muito medo na infância porque não conseguia entender o fascínio que lhe causavam. Agora podia conviver com eles na intimidade, pulsar com eles, buscar os frutos que a noite lhe traria se apenas consentisse em se perder. Os gatos cantavam a morte antes de germinar.
A escuridão protege formas que ninguém vê à luz do sol. Naquela noite em particular, adivinhava movimentos e atividades ocultos pela treva a sua volta, mas não queria acender as lâmpadas, porque nesses momentos tinha a sensação de ser uma polpa intensa e perfumada, um fruto da noite suportando seus delírios, e muda viajava nesse terror secreto que antecede o gozo.
Um sonho lhe havia mostrado mais que imagens enigmáticas: ela as reconhecia nas incertezas do futuro. Sabia que estava a ponto de criar outro rumo para sua vida – e na verdade já traçava esse rumo na fantasia. Mas relutava em deixar que a imagem daquele homem se instalasse de vez no olho do pequeno furacão que se armava, porque com isso estaria mergulhando – quem sabe – no mar em que se afogaria. Secretamente estremecia em seu claustro de semente, sabendo que nada a justificaria senão a perda.
Os gestos se alteravam, levava as mãos em concha até a boca e soprava dentro delas para testar o hálito que ele lhe sentiria, e por um segundo esse hálito não foi o seu, mas o do outro ainda oculto. O desejo dele se fortalecia, atravessava seus caminhos, exalava pelos poros e a escravizava. Pulsava imóvel, fixando a nesga de céu que podia alcançar por sua janela aberta, e sabia o que esperar, mas não até quando. Não ia demorar. Os seios intumescidos, uma ânsia em febre que a retorcia, chegaria antes do desejado, pelo sumo que se permitia, sugando os dedos na delícia atroz dessa noite de espera sem chegada. Bem sabia, ia chegar sozinha.
Começou a sentir náusea pela escuridão riscada de gritos que a deixavam no cio, que a atingiam como pedaços de vidro vindos de longe a cortar sua carne.
O corpo lhe escapava. Um futuro oblíquo já penetrava em seu sangue e se confundia com sua própria pulsação. Não havia mais como mantê-lo à distância. Não queria, não ia ficar sozinha para se deixar resvalar na metade muda de um prazer vazio. Ele estava ali como um ser da noite, na certa pensava nela naquele momento e a queria também. Abandonou então sua própria vertigem à vertigem do desejo dele e deixou que aquele homem secreto a cobrisse e lambesse no pescoço, nos seios, na bunda, na barriga que se arregaçava para que seu falo rijo entrasse e se esfregasse lá dentro entre suas pernas até tocar no mais fundo que a fazia gritar de gozo; que magoasse sua carne macia com as mãos pesadas, apertasse suas coxas até deixá-las marcadas de seus dedos e sugasse suas partes doces e cheirosas, mordesse seus seios e derramasse seu caldo quente dentro dela duas, três, quatro, as vezes sem conta em que toda desabrochou por suas mãos, querendo morrer de tanto gozar por todo o corpo sobre o lençol molhado que os vestia.
Quando o sol a despertou, viu no travesseiro do lado a marca côncava da cabeça dele. Sentia ainda o calor de seus membros sobre seu próprio corpo.

domingo, 10 de novembro de 2013

Liberdade para pensar



Afinal, penso o pensamento de quem? Se é o meu mesmo, por que recebe tanta influência dos outros? Será que tem que ser sempre assim?

Às vezes fico assombrada com a uniformidade de determinados discursos. Vivemos à sombra de um emaranhado de ideias e pontos de vista ditados por interesses que não conhecemos e não são os nossos. Não dá para confundir gestos e atitudes impulsivas com opiniões próprias.

Há uma diferença sensível entre o que de fato acontece na vida real e o que chega a nosso conhecimento via mídia. Aderimos um pouco sem sentir à opinião de um ou outro colunista que admiramos, pelo que sabemos dele e por suas ideias. Até aí, tudo bem. Mas é preciso cuidado com o efeito cumulativo desse processo. Acabamos nos condicionando a pensar pela cabeça dos outros, o que não se recomenda, por melhores que os outros sejam.

O risco da pressão que a mídia e as opiniões recorrentes exercem sobre nós é maior do que normalmente se imagina. Fica muito fácil pensar como todo mundo – afinal, por que ser diferente? Conheço pessoas que se escandalizam com posições discordantes daquelas da maioria que as cerca. Isso corresponde mais ou menos ao que se costuma chamar de senso comum. No entanto, o senso comum é um dos piores inimigos da liberdade de pensamento e do bom senso, justamente por ser um dos maiores responsáveis por essa cultura deficitária e desfalcada que predomina em nosso país.

Sem informação, com a pouca instrução que a escola nos garante e viajando nos universos da tevê e das revistas comerciais e alienadas que nos cercam, como juntar as peças para um raciocínio mais alerta? Como entender realmente os fatos, assumir uma atitude diante deles, ter uma opinião clara e definida?

Afinal, penso o pensamento de quem? Se é o meu, preciso ficar alerta para avaliar até que ponto a influência dos outros está me impedindo de pensar e agir de modo coerente com o que realmente desejo e espero da vida.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Nostalgia sem saudade





Theo G. Alves. A casa miúda. Currais Novos, edição artesanal, 2005. 95 p.

O próprio passado, recriado em crônicas e contos de Theo G. Alves, gerou um presente que não fala de saudade – entendendo por saudade o desejo impossível de repetir o que já foi, de reviver a vida da memória. Pode ser que esse jovem do Rio Grande do Norte sinta falta de alguém ou de algum lugar de seu breve passado, mas isso só diz respeito a ele próprio.
O mesmo não acontece com o texto de Theo. Para os leitores, A casa miúda – um título alusivo talvez à tenra idade – é produto de experiências poéticas, contatos e percepções reprocessados e reconstruídos. A matéria prima é viva e úmida, mas o produto é nitidamente diferenciado e enriquecido de conquistas e aperfeiçoamento.
A escolha dos temas tangencia muitas vezes um memorialismo, que no entanto não se explicaria senão pelo viés poético com que ele os focaliza e que lhes dá uma vitalidade  universal. Theo não narra sua história de vida, ainda muito breve e restrita, mas fala de sua intensa aventura existencial traduzida em narrativas curtas, deliciosas como o “Exercício de poesia nº 26 – Antônio e o escafandro”, plenas de referências como “Meu silêncio é Gregor Samsa” ou personagens marcantes como “João Doido”.
Theo G. Alves apenas começa, e começa bem. Certamente muitas outras casas ainda estão por vir. Bem-vindo, Theo.