domingo, 27 de outubro de 2013

A Educação segundo Rousseau




O respeito às diferenças e a obediência às leis da natureza, tanto no sentido genérico como no de diferenças individuais nas diversas fases da existência, foram princípios que o genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) levou às últimas consequências. Sua crença de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe conduziu um pensamento em que a educação deve livrar o homem das imposições sociais, ensinando-o a viver de acordo com a natureza e em liberdade.

A desigualdade entre os cidadãos, devida a circunstâncias sociais, indica as falhas da civilização, que vão do ciúme nas relações amorosas à institucionalização da propriedade privada, pilar do sistema econômico. Para amenizar essas desigualdades, a sociedade criou artifícios como o culto das aparências e a necessidade da polidez. Reconquistar a liberdade seria o primeiro objetivo da educação, a começar pela busca do autoconhecimento. Mas em vez de usar a razão, o educador usaria a emoção, sob a forma de entrega sensorial à natureza. E o primeiro passo nesse sentido seria modificar o relacionamento rígido entre adultos e crianças.

A criança deixa de ser um adulto em miniatura. Suas idéias e interesses são diferentes daqueles dos adultos, e o relacionamento rígido entre elas e os mais velhos precisa mudar.

A disciplina e a memorização mecânica são impróprias ao desenvolvimento das virtualidades humanas, impondo valores alheios aos interesses genuínos do indivíduo. A educação não deve vir de fora, mas busca a expressão livre da criança em contato com a natureza. Para isso utiliza o brinquedo, o esporte, o trato com a terra, a aprendizagem de vários ofícios e seus instrumentos; a linguagem, o canto, a aritmética e a geometria abrem caminho à adaptação livre da criança a seu meio até os 12 anos, quando prevalecem os sentidos, as emoções e corpo físico, enquanto a razão ainda se forma. A formação moral e política nessa fase são prioritárias, mais importantes que a mera instrução. Nesse sentido, Rousseau precedeu Maria Montessori (1870-1952) e John Dewey (1859-1952). Sistematizou uma nova concepção de educação, depois chamada de ‘escola nova’, reunindo vários pedagogos dos séculos 19 e 20.

A opção pela democracia decorreu da defesa da liberdade individual. Seus conceitos sobre educação mostram o processo educativo do nascimento aos 25 anos, enfatizando a fase cognitiva. A infância é um período de virtualidades, indica Freinet, citado por Nascimento (1995): criação, empreendimento, liberdade e cooperação, a partir dos quais o educador visará transformar o educando em um homem e cidadão, antes de fazer dele um “magistrado, soldado ou sacerdote”. E como aponta Peres Pissarra (s.d.), professora de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, “a dimensão política é crucial em seus princípios de educação.”

Rousseau foi acusado de individualismo e de negar a importância da civilização. Mas o mito do bom selvagem, que idealiza o ser humano livre de constrangimentos sociais, deve ser visto como mero recurso teórico. Seu pensamento soava rebelde, numa época de culto à razão. Enciclopedistas e pensadores da Revolução Francesa de 1789 manifestaram seu desacordo quanto a suas teorias e a seu misticismo, defensor de um Deus “que move o universo e ordena todas as coisas”. Isso não o impediu de colaborar na Enciclopédia Iluminista, com o verbete sobre música, e influenciar artistas do Romantismo; mas as dissensões se acentuaram até o conflito aberto. Voltaire chegou a dizer dele que "ninguém jamais pôs tanto engenho em querer nos converter em animais".


Cerisara, Ana Beatriz. Rousseau – A Educação na infância. São Paulo: Scipione, 1989. (Coleção Pensamento e Ação do Magistério).
Nascimento, M. Evelyna do. A pedagogia Freinet: natureza, educação e sociedade. Campinas: Unicamp, 1995.
Peres Pissarra, Maria Constança. Rousseau – A Política como exercício pedagógico. Moderna. s.d.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Leitura perfumada




Andei relendo as Histórias de cronópios e famas, do Cortázar, autor e livro pelos quais tenho especial ternura. (É engraçado como certos livros ficam amigos da gente – ou a gente deles, talvez seja mais realista dizer assim.) Cronópios então é um de meus melhores e maiores amigos-livros. Assim como os amigos-gente, eles também se mostram um pouco diferentes a cada vez que os encontramos. Não ficam mais gordos ou mais magros, mas envelhecem e amadurecem, física e emocionalmente. À medida que o tempo passa, vão firmando a imagem mental que temos deles, aprofundam os sentidos de seu texto e deixam perceber novos sentidos que antes nos escapavam. Pode-se dizer que vamos conhecendo melhor nossos livros a cada leitura, o que certamente tem a ver com nosso próprio auto-conhecimento e maturidade.
Reli as Histórias pela quinta ou sexta vez, e elas sempre me dão um enorme prazer e me fazem rir. Mas nessa última leitura descobri um atrativo inusitado em meu exemplar: sem eu saber como nem por quê, o livro ficou perfumado. Não que o perfume de minhas mãos tivesse passado para ele. O cheiro é outro: é meio madeirado, um pouco sândalo, um pouco poeira, com um toque bem leve de baunilha que o redime e o deixa realmente uma delícia. Um perfume com um bom fixador, porque impregnou o livro inteiro, de capa a capa. Um perfume masculino, com certeza – e que agora associei a Cortázar.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Adélia





Desde o primeiro livro de Adélia, Bagagem (quem não leu queira ter o bom gosto de ler), me interesso em saber tudo sobre ela. A mídia e o mercado editorial tentaram rotulá-la como uma mística sensual. Adélia é as duas coisas, mas não há rótulo que dê conta de sua obra, de sua personalidade poderosa. Ela transborda, vai muito além e desmancha qualquer pretensão intelectualóide. Interesseira quando escreve ou começa a falar.
Primeiro, Adélia Prado é mística na medida do potencial humano, nada além. Sua fé está à flor da pele. Atinge as pessoas de um modo quase desconcertante pela qualidade cristalina que, longe de limitar sua atividade de escritora e sua postura pública, dá força e ilumina tudo que ela diz e faz. Sem proselitismo, sem pose de guru nem sombra de magia esotérica. Como a própria faz questão de deixar muito claro, “a transcendência está entre nós”. Não prega um paraíso futuro e problemático. Não tenta impingir nada: Adélia exerce suas convicções com a mesma naturalidade com que come, dorme, trabalha ou ama.
Acredito que chegar a esse ponto de pregnância se deve a alguns fatores que não percebemos de entrada, como a educação e a intensa experiência de vida familiar na infância; a formação filosófica (a que ela empresta pouca importância, mas que certamente pesou para que ela fosse quem é); a estrita fidelidade à busca da beleza e – talvez em consequência - uma forma de engajamento radical no dia-a-dia de que raras pessoas são capazes. A poesia brota desse amálgama como uma planta no chão fértil.
Em segundo lugar, a propalada sensualidade que Adélia expressa é, sim, sensualidade. E daí? Quem de nós, dotados de sexo, hormônios e desejos, desconhece a sensualidade e não a aprecia como um dos maiores prazeres da vida? Adélia dá graças a Deus por esse dom e não se envergonha de reconhecer sua prática. Quem pretendia fazer dela uma devassa religiosa, uma espécie de fetiche para vender mais livros, deve ter se frustrado de verde e amarelo, porque o amor celebrado em suas palavras é tantas vezes carnal e natural sem nunca deixar de ser amor – aquele que não polui o coração, não turva a serenidade nem violenta a dignidade do amante.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Poço sem fundo




Adelaide Amorim

                                                           Tu queres ilha: despe-te das coisas,
                                                           Jorge de Lima, Invenção de Orfeu


Olhou o homem alto de cabelos grisalhos que se aproximava, absorto, os olhos perdidos em algum lugar de tristeza. Rapidamente fixou as mãos dele, os dedos longos e fortes segurando o cigarro.
“Não me viu” – pensou, e sem querer completou o pensamento – “e se visse não ia dar a mínima.”
Por quê? Por que tinha que ser assim? Os homens só olhavam para as outras. Nesses momentos era a imagem do cansaço, a boca descaía, as rugas ao redor da boca se alongavam, os sulcos fininhos se acentuavam em volta dos olhos. Lembrou os cabelos sem brilho, tinha esquecido de novo de comprar aquele xampu que iria resolver tudo. Ou não.
O desalento tomou conta dela, e aí se viu refletida na vidraça da tinturaria antiga da Marquês de Abrantes. Num gesto reflexo levantou a cabeça e ergueu os ombros. Encolheu a barriga o mais que pôde e deu em cheio com o olhar do porteiro do prédio ao lado. O homem percebeu sua confusão e deslizou os olhos sonsamente com um meio-sorriso.
Pensamentos misturados e sem palavras a deixavam muito aflita, e acabou tropeçando numa rachadura da calçada. Por que tanta aflição? Sofria como se usasse seios postiços e um deles caísse de repente em plena rua no meio dos passantes. Nada tão grave, só tinha tentado uma postura que não era a dela, nunca ia ser. Só tinha criado um de seus momentos de ilusão, mas logo esqueceria e voltaria a ser ela mesma, curvada e sem jeito. Às vezes achava que sua vida era como uma dessas nuvenzinhas ralas que vagam pelo céu ao sabor dos ventos. Nuvens como as linhas indecisas de sua mão.
Não tinha sabido aproveitar as oportunidades. Queria tanto ajudar as pessoas, ser útil e querida, que causava desconfiança ou desconforto aos outros. Vivia contando suas gafes às colegas – por que, se isso só reforçava a imagem que gostaria de desfazer? Precisava ter mais dignidade, parar de contar tudo para todos, de se expor assim ao julgamento de pessoas que nem a conheciam direito, parar de bancar a boba. Além disso pedia licença demais, desculpas demais, preocupava-se demais com o bem-estar dos outros, mesmo dos estranhos que cruzassem seu caminho. Isso não lhe dava nenhum prazer, ao contrário, era como uma obrigação, quase uma compulsão atropelando sua vontade. Qualquer miúdo interesse dos outros era maior que os dela mesma. Sempre se exigia atitudes forçadas, excessivas, por isso vivia tão cansada.
Aí entendeu o miolo da coisa: a aflição era justamente ser esse irremediável. “Primeiro é preciso a gente mesma acreditar e depois os outros vão se convencendo”, pensou, e de novo pisou em falso. O pensamento não lhe agradava, antes a fazia sentir-se ainda mais deplorável, como se estivesse recorrendo a expedientes de mentira.
Estava sozinha agora como sempre tinha estado. Só lhe restava viver dos pequenos gestos de todo dia e esperar. Seria mesmo verdade que as melhores coisas da vida só acontecem quando se está distraído?

domingo, 6 de outubro de 2013

Que bela gata amarela




Tomou o metrô na Siqueira Campos à tardinha. Vestia jaqueta de brim cinza, saia de leve algodão florido e sandália de dedo branca e azul. Nos tornozelos, correntes prateadas. Nos dedos – todos – anéis de variados tamanhos e materiais. O cabelo era louro de farmácia, a pele queimada de praia, as unhas pintadas de preto. Óculos escuros tipo deixem-me só. Carregava uma mochila meio ensebada azul-cinza de náilon. Assim que sentou no canto da janela, penúltimo banco, escondeu o rosto no braço, apoiado no rebordo da vidraça, e viajou assim imóvel até a Saenz Peña, só os cabelos amarelos à vista. Esperou que o trem parasse e abrisse as portas, e foi a última a sair. Flutuou na saia leve como se voasse escadas acima, e se alguém fixasse o olhar em seu rosto veria as espinhas, mas isso não aconteceu. Ela foi mais rápida. Cruzou o espaço entre a saída da estação e o microônibus que a levaria até a Usina da Tijuca, acomodou-se no último banco da direita, junto à janela, e tornou a mergulhar o rosto no braço dobrado. Magrinha, miúda, imóvel e secreta.
No início da Rocha Miranda, mochila afivelada às costas, montou na garupa da moto do piloto de capacete negro, jaqueta de couro, bermuda jeans e chinelo de dedo.
— Tudo certo, gata?
— Já é.

Na Santa Clara, dona Selma entrava no quarto e encontrava o armário aberto e as gavetas viradas no chão. Logo dava falta das jóias e dos dólares, mais ou menos no momento em que ela chegava ao ponto da Usina.
— A desgraçada! A larápia! – vociferou. Nem ao menos sei onde essa infeliz se esconde. No segundo dia de trabalho! Por isso saiu sem se despedir! E eu nem sei onde...